terça-feira, 14 de maio de 2024

Viagem ao Chile Parte 5 – Casa Museu Isla Negra

 

Isla Negra, refúgio de Neruda

Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.

Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,

entre o fogo e a água.

Talvez bem tarde nossos

sonos se uniram na altura ou no fundo,

em cima como ramos que um mesmo vento move,

embaixo como raízes vermelhas que se tocam.

(...)

Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.

Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca

saída de teu sono me deu o sabor da terra,

de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,

e recebi teu beijo molhado pela aurora

como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

 

            Deixamos o penúltimo dia da viagem para conhecermos aquela que é a mais importante e emblemática das residências de Pablo Neruda (1904-1973) no Chile: Isla Negra. O poeta comprou a propriedade em 1939, ampliando-a nos anos seguintes, e lá residiu até os anos finais de sua vida. Seus restos mortais, como de sua última esposa, Matilde Urrutia, foram levados para o local em 1990, conforme o desejo do escritor.

            Neruda é o mais popular e querido poeta chileno. Sua vasta obra é conhecida internacionalmente e mereceu o prêmio Nobel de Literatura em 1971. Além de escritor, Neruda também atuou na política e ocupou várias posições diplomáticas em países como Argentina, México, Espanha e Birmânia. Pertenceu ao partido comunista e elegeu-se senador da República em 1943. Dentre suas várias obras, destacam-se “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, a autobiografia “Confesso que vivi” e a obra-prima “Canto Geral”.

            Teve profundas ligações com o Brasil, sendo amigo pessoal do escritor Jorge Amado e do líder comunista Luís Carlos Prestes, a quem homenageou no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, mediante 100.000 pessoas em 1945.

            Pablo Neruda morreu em 1973, 12 dias depois da morte do presidente Salvador Allende, que era seu amigo pessoal. Fato este que desencadeou a ditadura chilena, liderada pelo general Pinochet. Até pouco tempo, acreditava-se ele havia morrido em decorrência de um câncer de próstata. Mas, em 2017, foi descobriram a existência da bactéria clostridium botulinum nos molares do poeta, sugerindo que ele teria sido envenenado.

           

            Isla Negra não é uma ilha, como o nome leva a crer. É um pedaço de terra à beira mar, numa praia bastante agitada e coberta de rochas escuras. A casa espalha-se pelo terreno, de uma forma alongada, como se representasse o mapa do Chile. Nos diversos cômodos, Neruda e sua esposa depositaram as coleções realizadas ao longo da vida. Muitos dos objetos são alusivos ao oceano, como as figuras de proa de navios, a maioria delas em representações femininas. Tal qual as carrancas do Rio São Francisco, no Brasil, elas eram usadas na frente das embarcações para afastar os maus espíritos e a má sorte. Há coleções de garrafas e vidros coloridos, que era uma das manias do poeta, além de máscaras, objetos decorativos, instrumentos musicais, miniaturas de embarcações, conchas e estrelas do mar.

            Um dos objetos de destaque é um cavalo de papel-marchê em tamanho natural, fruto das reminiscências da infância do poeta. O cavalo era exibido numa vitrine de uma loja de Temuco, cidade onde ele foi criado. Todos os dias, aquela figura equina imponente chamava a atenção da criança que se detinha diariamente, por alguns minutos, para admirá-la. Anos mais tarde, Neruda tomou conhecimento de que um incêndio havia destruído o comércio e que apenas o cavalo havia sobrevivido. Despendeu todas as energias e contatos para comprar aquele objeto de sua admiração. Chamado de “o mais feliz dos cavalos”, a imponente escultura foi restaurada e instalada em um dos cômodos da Isla Negra, em posição de destaque.

            Quase tudo rescende a poesia. Embora muitas peças tenham sido remanejadas para a estruturação do museu, que se deu após a sua morte pela fundação que leva o seu nome, o espírito poético foi mantido e é ele que torna a residência uma obra de arte. O estúdio do poeta, por exemplo, conserva ainda a escrivaninha que usava para escrever. A tábua da mesa é uma porta perdida de um navio que foi encontrada na praia. Na parede, quadros homenageiam seus ídolos, como Walt Whitman e Rimbaud. Até mesmo os insetos que ele tanto admirava estão presentes, como as mariposas, besouros e borboletas que colecionou durante sua vida.

            Não é permitido fotografar a parte interna da casa, exceto se a imagem for produzida do lado de fora, pelos vidros das janelas. Desta maneira, Wagner conseguiu, com o celular, ótimos registros que coloquei no final deste texto.

Do lado de fora, outros objetos vão compondo as preferências do escritor, como o campanário em forma de estrela, o barco, as esculturas de peixes e até mesmo uma antiga locomotiva. Tudo isso abraçado e harmonizado pela presença do oceano.

            Juntamente com o ingresso no museu, o visitante recebe um áudio-guia com explicações sobre cada sala. Tem uma versão em português. O valor da visita é de 9.500 pesos (aproximadamente 50 reais). O local ainda conta com uma loja de produtos relativos ao museu e ao poeta, um pequeno auditório e um café.

            Para chegar a Isla Negra, situada a 90 km de Valparaíso, pegamos um ônibus no terminal rodoviário. A viagem dura uma hora e meia e a passagem custa 10.000 pesos ida e volta.

           

Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força

que acordarás as fúrias do pálido e do frio,

de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,

de sol a sol sonha através de tua boca cantante.

 

Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.

Não quero que minha herança de alegria morra.

Não me chames. Estou ausente.

Vive em minha ausência como em uma casa.

 

A ausência é uma casa tão rápida

que dentro passarás pelas paredes

e pendurarás quadros no ar.

 

A ausência é uma casa tão transparente

que eu, morto, te verei, vivendo,

e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente.

Pablo Neruda

Matilde e Neruda em Isla Negra

O casal no interior da casa







Túmulo de Neruda e sua última esposa, Matilde Urrutia





Wagner e o busto de Neruda


Interior do museu

Neruda colecionava figuras de proa

Sala do museu

Wagner e a imagem do poeta quando jovem


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Viagem ao Chile Parte 4 – Viña del Mar

 

Em frente ao icônico Relógio das Flores (foto de Wagner Cosse)


Fotos de Thelmo Lins e Wagner Cosse


Clique nas fotos para ampliá-las


           Há uma linha de metrô que liga Valparaíso a outras localidades da região. Inaugurado em 2005, ele tem 20 estações e 43 km de extensão. Nosso hostal localizava-se próximo à estação Barón. Foi a partir dela que rumamos para Viña del Mar. Apenas 9 km separam as duas cidades.

            Fundada em 1874, Viña del Mar surgiu a partir de um terremoto que destruiu parte de Valparaíso e foi a senha para que a elite portenha procurasse um novo local para residir. Uma antiga fazenda de vinhedos, assentada em um terreno plano, foi escolhida para se tornar o que hoje é Viña del Mar.

            Dali surgiram bairros e ruas amplas e bem traçadas, mansões e edifícios luxuosos, que atraíram as pessoas mais endinheiradas. Foram também construídos praças e canteiros, que a apelidaram de “Cidade Jardim”. Hoje é possível caminhar por alamedas cercadas de plátanos, que, neste início de outono, colore as folhas de um tom alaranjado. Atualmente, ostentosos condomínios ocupam parte da orla.

            Não visitamos Viña del Mar em um dia ideal. Muito pelo contrário, havia muita neblina e o sol havia desaparecido do céu, criando uma atmosfera bastante cinzenta. Totalmente diferente do que se imagina de uma praia muito procurada pelos turistas. Portanto, a cidade não teve a chance de brilhar como poderia para nós, que estávamos a conhecendo.

            Ironicamente, foi a primeira vez que estive em um balneário com casaco de frio, o que não deixa de ser inusitado. E Wagner e eu até pensávamos e, pelo menos, colocar os pés no Oceano Pacífico, mas o clima nos desanimou.

            Sendo assim, fizemos um passeio pela orla, conhecendo algumas praias e vendo alguns pontos turísticos, como o Teatro Municipal (1930), o Castelo Wulff (1905), a Quinta Vergara (1906-10) e o Cassino Municipal (1932). Caminhando um pouco mais, chegamos ao famoso Relógio das Flores (1962), o principal cartão-postal da cidade. Embora mais bonito, ele lembra muito o similar existente em Poços de Caldas (MG), que também já visitamos.

            Devido ao tempo e à nossa curiosidade antropológica, nos detivemos um pouco mais no Museu de Arqueologia e História Francisco Fonk. Na fachada, chamando a atenção de todos os pedestres, há uma escultura original de um moai, de aproximadamente três metros de altura, proveniente da Ilha da Páscoa.

            Mesmo distando 3.000 km da costa, a ilha faz parte do território chileno. Para alcançá-la são necessárias seis horas de voo. No museu Fonk há uma sessão dedicada à Páscoa, cuja história sempre provocou imensa curiosidade nos estudiosos e público em geral. De acordo com uma pesquisa que fiz, a ilha vulcânica, situada na Polinésia, é repleta de sítios arqueológicos, que incluem os 900 moais, figuras humanas esculpidas com cabeças gigantes, que remontam a 300 ou 400 d.C. A maioria tem entre quatro e seis metros de altura e pesam cerca de 14 toneladas. O maior é o El Gigante, com 20 metros e 270 toneladas. No entanto, ele continua inconcluso e, por isso, nunca foi erguido.

            No museu é possível encontrar muitos artefatos do povo de Rapa Nui, como seus habitantes a denominam, como máscaras, ferramentas e joias. A coleção é reconhecida como uma das mais completas sobre esses povos originários.

            Mas no Fonk há outras coleções, sobre os povos Atacameños, Mapuches e Diaguitas, que ocupavam diversas regiões do Chile. Além disso, ficamos sabendo que a região era habitada por animais de grande porte, como mamutes, preguiças gigantes, dentre outros que já foram extintos.

            No andar superior do museu, uma impressionante coleção animais empalhados, insetos, borboletas e aves nativos do país, alguns deles ameaçados de extinção, como a puma, por exemplo. Há besouros e escaravelhos que causam até arrepios devido ao seu formato e tamanho.

Há também um exemplar do condor, ave símbolo do Chile, incluída até mesmo em seu brasão. É a maior ave voadora do mundo, com mais de três metros de envergadura, cerca de 14kg e capazes de cobrir distâncias de até 300km sem bater as asas.

Sem sol e sem praia, é hora de nos despedirmos de Viña del Mar. Além da cidade, há outras praias badaladas na região, como Concón, Quintay e Algarrobo que, com certeza, merecem ser visitadas no verão.

            Nossa próxima parada será Isla Negra, onde está a mais bela casa de poeta Pablo Neruda. Até lá!

 

Paisagem outonal de Viña del Mar


Museu de Artes Decorativas

Cassino e hotel

Castelo Wulff

Edifícios da área central da cidade




Gaivotas se reunem na areia da praia e nas rochas


Cassino Municipal visto de outro ângulo

Arquitetura contemporânea

Praia da área central

Hotel de luxo localizado na costa

Relógio das Flores e praças adjacentes



Região da Playa Blanca tomada pela neblina




Casal namora na praia quase deserta

Sentindo frio à beira mar

Teatro Municipal

Folhas de outono

Museu Fonk



Totem utilizado pelos povos mapuches





Cajados com rostos humanos desidratados




Desenho demonstra a chegada do europeu à ilha, no final do século XIX

Algumas espécies de borboletas no Chile

Pumas e condor: animais em extinção




Viagem ao Chile Parte 5 – Casa Museu Isla Negra

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