Isla Negra, refúgio de Neruda |
Dormi contigo a
noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce
eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a
água.
Talvez bem tarde
nossos
sonos se uniram
na altura ou no fundo,
em cima como
ramos que um mesmo vento move,
embaixo como
raízes vermelhas que se tocam.
(...)
Nem a noite nem
o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo,
amor, despertei, e tua boca
saída de teu
sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha,
de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu
beijo molhado pela aurora
como se me
chegasse do mar que nos rodeia.
Pablo Neruda
Deixamos o penúltimo
dia da viagem para conhecermos aquela que é a mais importante e emblemática das
residências de Pablo Neruda (1904-1973) no Chile: Isla Negra. O poeta
comprou a propriedade em 1939, ampliando-a nos anos seguintes, e lá residiu até
os anos finais de sua vida. Seus restos mortais, como de sua última esposa,
Matilde Urrutia, foram levados para o local em 1990, conforme o desejo do
escritor.
Neruda é o mais
popular e querido poeta chileno. Sua vasta obra é conhecida
internacionalmente e mereceu o prêmio Nobel de Literatura em 1971. Além
de escritor, Neruda também atuou na política e ocupou várias posições
diplomáticas em países como Argentina, México, Espanha e Birmânia. Pertenceu ao
partido comunista e elegeu-se senador da República em 1943. Dentre suas várias
obras, destacam-se “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, a
autobiografia “Confesso que vivi” e a obra-prima “Canto Geral”.
Teve profundas ligações
com o Brasil, sendo amigo pessoal do escritor Jorge Amado e do líder
comunista Luís Carlos Prestes, a quem homenageou no Estádio do Pacaembu, em São
Paulo, mediante 100.000 pessoas em 1945.
Pablo Neruda morreu em
1973, 12 dias depois da morte do presidente Salvador Allende, que era seu amigo
pessoal. Fato este que desencadeou a ditadura chilena, liderada pelo general
Pinochet. Até pouco tempo, acreditava-se ele havia morrido em decorrência de um
câncer de próstata. Mas, em 2017, foi descobriram a existência da bactéria clostridium
botulinum nos molares do poeta, sugerindo que ele teria sido envenenado.
Isla Negra não é uma
ilha, como o nome leva a crer. É um pedaço de terra à beira mar, numa praia
bastante agitada e coberta de rochas escuras. A casa espalha-se pelo terreno,
de uma forma alongada, como se representasse o mapa do Chile. Nos
diversos cômodos, Neruda e sua esposa depositaram as coleções realizadas ao
longo da vida. Muitos dos objetos são alusivos ao oceano, como as figuras
de proa de navios, a maioria delas em representações femininas. Tal qual as
carrancas do Rio São Francisco, no Brasil, elas eram usadas na frente das
embarcações para afastar os maus espíritos e a má sorte. Há coleções de
garrafas e vidros coloridos, que era uma das manias do poeta, além
de máscaras, objetos decorativos, instrumentos musicais, miniaturas de
embarcações, conchas e estrelas do mar.
Um dos objetos de
destaque é um cavalo de papel-marchê em tamanho natural, fruto das
reminiscências da infância do poeta. O cavalo era exibido numa vitrine de uma
loja de Temuco, cidade onde ele foi criado. Todos os dias, aquela figura equina
imponente chamava a atenção da criança que se detinha diariamente, por alguns
minutos, para admirá-la. Anos mais tarde, Neruda tomou conhecimento de que um
incêndio havia destruído o comércio e que apenas o cavalo havia sobrevivido.
Despendeu todas as energias e contatos para comprar aquele objeto de sua
admiração. Chamado de “o mais feliz dos cavalos”, a imponente escultura foi
restaurada e instalada em um dos cômodos da Isla Negra, em posição de destaque.
Quase tudo rescende a
poesia. Embora muitas peças tenham sido remanejadas para a estruturação do
museu, que se deu após a sua morte pela fundação que leva o seu nome, o
espírito poético foi mantido e é ele que torna a residência uma obra de
arte. O estúdio do poeta, por exemplo, conserva ainda a escrivaninha que usava
para escrever. A tábua da mesa é uma porta perdida de um navio que foi
encontrada na praia. Na parede, quadros homenageiam seus ídolos, como Walt
Whitman e Rimbaud. Até mesmo os insetos que ele tanto admirava estão presentes,
como as mariposas, besouros e borboletas que colecionou durante sua vida.
Não é permitido
fotografar a parte interna da casa, exceto se a imagem for produzida do lado de
fora, pelos vidros das janelas. Desta maneira, Wagner conseguiu, com o celular,
ótimos registros que coloquei no final deste texto.
Do lado de fora, outros objetos vão compondo as
preferências do escritor, como o campanário em forma de estrela, o
barco, as esculturas de peixes e até mesmo uma antiga locomotiva.
Tudo isso abraçado e harmonizado pela presença do oceano.
Juntamente com o
ingresso no museu, o visitante recebe um áudio-guia com explicações
sobre cada sala. Tem uma versão em português. O valor da visita é de 9.500
pesos (aproximadamente 50 reais). O local ainda conta com uma loja de produtos
relativos ao museu e ao poeta, um pequeno auditório e um café.
Para chegar a Isla
Negra, situada a 90 km de Valparaíso, pegamos um ônibus no terminal
rodoviário. A viagem dura uma hora e meia e a passagem custa 10.000 pesos ida e
volta.
Se eu morrer,
sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as
fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul,
ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol
sonha através de tua boca cantante.
Não quero que
tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que
minha herança de alegria morra.
Não me chames.
Estou ausente.
Vive em minha
ausência como em uma casa.
A ausência é uma
casa tão rápida
que dentro
passarás pelas paredes
e pendurarás
quadros no ar.
A ausência é uma
casa tão transparente
que eu, morto,
te verei, vivendo,
e se sofreres,
meu amor, eu morrerei novamente.
Pablo Neruda
Matilde e Neruda em Isla Negra |
O casal no interior da casa |
Túmulo de Neruda e sua última esposa, Matilde Urrutia |
Wagner e o busto de Neruda |
Interior do museu |
Neruda colecionava figuras de proa |
Sala do museu |
Wagner e a imagem do poeta quando jovem |
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